cala a boca, cara!

terça-feira, 4 de setembro de 2018


Luci


Hoje perdi meu pai pela segunda vez.
As chamas limparam as salas onde, de alguma maneira, ele ainda vivia dentro de mim.
Não consigo imaginar o Museu Nacional ali na quinta da Boa Vista sem ele a meu lado.
Não sei porque ele gostava tanto daquele museu que me levava muitas e tantas vezes lá.
Todas as salas ficaram para sempre cheias daquele homenzinho pequeno de olhos pequenos e cabeça enorme.
Branca. Dava nó em cada uma das 4 pontas do lenço e se cobria com aquele chapéu ridículo, sempre repetindo acima de nossa cabeça de michelotto, nem deus. Nunca vi outra cor em seus cabelos. Nasceu velho, parecia-me.
Não sei porque ficava horas- para mim o tempo não tinha a mesma dimensão que o dele nem que o meu hoje-
a me falar de faraós numa sala onde as múmias tinham um cheiro característico de múmias e eu me impregnava mais da morte que da aula sobre nosso povo se libertando deles. Todo Egito para Sílvio era grandeza. Mas para aumentar a grandeza dos que foram oprimidos por eles e se livraram. Toda vez que eu lá os via eu via também meu pai abrir o Mar Vermelho , se abrindo em largos gestos, dramático e gesticuloso como só meu pai. Nós somos o povo de deus. Meu deus, logo nós ali perdidos no fundo da Pavuna, cercados por despachos nas esquinas e o som do batuque de outros tantos deuses noite afora. Aos domingos pela manhã - depois da missa toda em F porque o vigário era alemão e nunca conseguiu se livrar desse defeito da língua alemã - como um ritual de uma religião pagã, sentavam-se na saleta de música, o Sr. Mário, pai; Dona Ambrosina, mãe;Adéle, filha;Sílvio,filho;Rainha Margô, mamãe oriunda de outra estirpe também fora de lugar, os andretti e o abiuzeiro se enchia de ária, o sapotizeiro se enchia de árias, e assim as mangueiras, videiras, jaboticabeiras, Pavuna.
A Pavuna se cobria toda soba a gelida manina ou transformada em Provenza , il mar e’ il suol, chi dal cuor ti cancellò, qual destino ti furo. Bando de italianos saudosos de sua terra natal, agarrados  a la voce del honor.
Que honra  há, deus meu, em se viver degredado e pobre?
Eles achavam que tinham uma cultura. Achavam que tinham um futuro se trabalhassem arduamente. Achavam que tinham o único deus verdadeiro do lado deles e quem  poderia ser contra.
E assim minha pequena família foi se afunando nas águas escuras da lagoa de  seu destino. A Lagoa Negra. A Pavuna dos Cariús, os verdadeiros donos daquelas terras todas agora tomadas por negros e italianos foragidos. Protegidos ferozmente por sua cultura alienígena.
Nas águas do lago nos afundamos. E quando a imagem deles ficou ereta no tempo, apoiada nas paredes sólidas e eternas e tradicionais e  históricas daquele Museu Nacional, quando a imagem daquelas vidas  se abrigou  como lembranças se refugiando nas salas de uma história do Mundo com cara de maior que a nossa, enfiada a golpes de solidão e perdas no fundo de  meu coração de pobre fugido de lá, quando toda essa frase sem sintaxe nem peso chegou penosamente até aqui , até onde eu também poderia escrever e  descrever e rever e fazer história eu também e fazer de conta que a história ensina, que a história se repete como as frases.
Quando tudo isso está acontecendo, ( respire/ pausa ) a ventania alimentou o fogo que já destruira impérios  e estátuas e bronze e ferro e pó  e folhas de louro e folhas de carvalho e foi comendo com ódio todos os cacarecos da civilização que  amamentara  minha infância de sonhos e mantivera mumificada dentro de mim a minha istória, a nossa istória, sem H nenhum, a istória que Seu Silvio, Dona Margô e Mário e Ambrosina, degredados filhos de  Giuditte, inventaram, rodeados como uma ilha, pela história de tantos quilombolas e indigentes ex indígenas
O fogo no Museu Nacional transformou em cinzas os últimos melhores capítulos de minha infância, de minha história perdida. O Museu Nacional alimentava nossa fome de história.  Como restos pobres de imigrantes, aproveitávamos o que a cidade oferecia, restos de um Rio Antigo restos de um Reino Antigo preso ainda pelas pedras dos casarões ao esplendor fugaz  de D. João o sexto e seus filhos, Pedro Um e Dois .
Ali aprendi as primeiras lições de revolta com um cara que parecia a mansidão, nunca levantou a mão para nenhum de nós. Deixava essa tarefa árdua para dona Margô. 
Ali aprendi,  bem depois, que Dona Margô é que era a heroína de muitas histórias.
Pobre mamãe, ter que surrar nós 4.
Ter que ficar fora da parte dos faraós, dos bustos romanos todos com o nariz em riste,da benção masculina que o deus meio hebreu reservava a nós, michelottos, expulsos para sempre  do paraiso  del natio suol onde palhaços ridevan, dio m’ eczaudia, harpas douradas  ficavam mudas nos Salgueiros, le memorie nell petto reascendiam  e eles, eles, grandes, adultos, saiam  todo domingo da sala de música  com os olhos marejados de lágrimas, por alguém que sofrera muito em alguma história carregada em acordes  meio sublimes -como a deles-. Como a deles. .. Tive que viver ainda meia existência para descobrir que a parte do cálice de vovó Ambrosina  e dela, mães, mulheres, italianas pobres, era diferente. Era a da borra no fundo do vinho misturado com água e açucar para as crianças..
A parte de Luci, apagada após dois mil anos de tentativa de se fazer notar.
A parte amarga.
A parte amarga que restou em mim.
E que mares, trombas de infinitas águas, lagoas negras de tão profundas, fogo algum de tiroteios e ódios cavalgando pela estreita rua número 54 ou de amores e paixões que passariam pela rua 54 mas bem ao longe da criança sentada  a pequena varanda olhando as raras pessoas passarem, vento algum veloz do morro, onde nasci . Nada, nada disso conseguirá afundar, dobrar, queimar o museu onde essa parte amarga se refugiou, tudo isso.
Tudo isso seguirá comigo até o fim, como seguiu no fundo de cada um daqueles que hoje finalmente desapareceram de minha história dentro das chamas e dos desleixo que consumiram nosso Museu Nacional.






Um comentário:

  1. COMENTÁRIOS DO FACEBOOK

    Alda Michelotto
    Alda Michelotto A tristeza das chamas desse incêndio foi apenas a gota d'água, o gatilho para reacender tuas lembranças mais preciosas. Conheci tua "heroína", teu "artista desligado ", tua Pavuna, tua varanda decorada com o afresco do "Lago de Garda", tua sala de música, teu pomar... Te amo, meu doce cunhado.


    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo E eu sei, Alda Michelotto o quanto todos amamos juntos aquela Quinta da Boa Vista e como, mais que o conteúdo do Museu, o que nos uniu foi seu continente, sua caixa, sua possibilidade de existência, sua permissão de acessar a memória, sua grandeza in…Ver mais


    Itamar Morgado
    Itamar Morgado Os ímpios nunca entenderão que um Museu se entranha em nossas entranhas e acharão que tudo se resolve reconstruindo um palacete. O texto de Michelotto é o melhor réquiem até agora!

    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo o desleixo nos transforma em pó, nos apaga.Refazer o Museu Nacional é escolher como história a tosca reconstituição da cabeça torrada de Luci.....

    Hatima Pombo · Amigos de Manuella Moema e 1 outra pessoa
    Concordo Itamar Morgado!

    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo Luciano Santiago Toni Rodrigues Flavia Pinheiro Flávio Galdino
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    Luciano Santiago Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo cresci indo a esse museu. Complicado essa situação. Grande perda!

    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo Ele era nossa salvação cultural.Papai vivia me levando lá.

    Alejandro De Jesus Liendo
    Alejandro De Jesus Liendo Una obra tan importante para Brasil ardió y ahora es una parte amargada los corazón que lo aman. Suerte inaudita y atroz para un gran país angustiado por tantas razones y cosas y ahora esto. Un museo en cenizas, un museo quemado.
    Un abrazo y que se levante la cultura ha construir gloria por el arte.
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    Adoro ·
    Pollyanna Monteiro
    Pollyanna Monteiro Vc me deixa sem palavras. Que texto!
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    Gaia Gall
    Gaia Gall Sem passado e sem futuro, é o presente dos golpista. Minha brasilidade não merece esse arrepio trevoso. Como a ignorância é lamentável!
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    Lígia Padilha
    Lígia Padilha Sabe, quanto mais o tempo passa, mais eu fico besta com sua tamanha lucidez, e a forma peculiar de ver e nos contar do mundo, da vida e das tragédias...
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    Flavia Michelotto
    Flavia Michelotto Belo relato tio. Verba para olimpíada, para museu do amanhã, para obras inúteis, para livros de artistas milionários, shows desnecessários de artistas milionários, rios de corrupção, anos de torneira aberta para bolsos maldosos, impunes e descompromiss…Ver mais

    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo oi menina. esses são dias de se chorar.Por favor, tome cuidado garota quando for ao Teatro Municipal tão querido de teu pai e do pai dele.Não sei o socialismo pode ter toda culpa nisso, até porque o Bolshoi continuou a dançar e ser mantido lindo no m…Ver mais
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    Bob Gillham I'm not allowed to put Love and Sad at the same time. Love for a fantastic piece of writing. Sad for all the things we have lost beyond the THINGS in the museum.

    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo thanks, Bob Gillham.There is no greater writers without great readers. You highlighted my feelings.We lost our actual and individual history too....
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    Joaquín Baldín Tu texto querido AMIGO, golpea en el centro del corazón...aunque el incendio demuele el alma... Cuanto dolor...que enorme e irreparable perdida para la humanidad...
    Abrazo AMIGO
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    Michelotto Toonomamoueinaikaneís Paulo abrazo hermano!
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