Hoje perdi meu pai pela segunda vez.
As chamas limparam as salas onde, de alguma maneira, ele
ainda vivia dentro de mim.
Não consigo imaginar o Museu Nacional ali na quinta da Boa
Vista sem ele a meu lado.
Não sei porque ele gostava tanto daquele museu que me levava
muitas e tantas vezes lá.
Todas as salas ficaram para sempre cheias daquele homenzinho
pequeno de olhos pequenos e cabeça enorme.
Branca. Dava nó em cada uma das 4 pontas do lenço e se
cobria com aquele chapéu ridículo, sempre repetindo acima de nossa cabeça de
michelotto, nem deus. Nunca vi outra cor em seus cabelos. Nasceu velho, parecia-me.
Não sei porque ficava
horas- para mim o tempo não tinha a mesma dimensão que o dele nem que o meu
hoje-
a me falar de faraós numa sala onde as múmias tinham um
cheiro característico de múmias e eu me impregnava mais da morte que da aula
sobre nosso povo se libertando deles. Todo Egito para Sílvio era grandeza. Mas
para aumentar a grandeza dos que foram oprimidos por eles e se livraram. Toda
vez que eu lá os via eu via também meu pai abrir o Mar Vermelho , se abrindo em
largos gestos, dramático e gesticuloso como só meu pai. Nós somos o povo de
deus. Meu deus, logo nós ali perdidos no fundo da Pavuna, cercados por
despachos nas esquinas e o som do batuque de outros tantos deuses noite afora.
Aos domingos pela manhã - depois da missa toda em F porque o vigário era alemão
e nunca conseguiu se livrar desse defeito da língua alemã - como um ritual de
uma religião pagã, sentavam-se na saleta de música, o Sr. Mário, pai; Dona
Ambrosina, mãe;Adéle, filha;Sílvio,filho;Rainha Margô, mamãe oriunda de outra
estirpe também fora de lugar, os andretti e o abiuzeiro se enchia de ária, o
sapotizeiro se enchia de árias, e assim as mangueiras, videiras, jaboticabeiras,
Pavuna.
A Pavuna se cobria toda soba a gelida manina ou transformada
em Provenza , il mar e’ il suol, chi dal cuor ti cancellò, qual destino ti
furo. Bando de italianos saudosos de sua terra natal, agarrados a la voce del honor.
Que honra há, deus
meu, em se viver degredado e pobre?
Eles achavam que tinham uma cultura. Achavam que tinham um
futuro se trabalhassem arduamente. Achavam que tinham o único deus verdadeiro
do lado deles e quem poderia ser contra.
E assim minha pequena família foi se afunando nas águas
escuras da lagoa de seu destino.
A Lagoa
Negra.
A Pavuna dos Cariús, os verdadeiros donos daquelas terras todas agora
tomadas por negros e italianos foragidos. Protegidos ferozmente por sua cultura
alienígena.
Nas águas do lago nos afundamos. E quando a imagem deles
ficou ereta no tempo, apoiada nas paredes sólidas e eternas e tradicionais
e históricas daquele Museu Nacional,
quando a imagem daquelas vidas se
abrigou como lembranças se refugiando
nas salas de uma história do Mundo com cara de maior que a nossa, enfiada a
golpes de solidão e perdas no fundo de
meu coração de pobre fugido de lá, quando toda essa frase sem sintaxe
nem peso chegou penosamente até aqui , até onde eu também poderia escrever
e descrever e rever e fazer história eu
também e fazer de conta que a história ensina, que a história se repete como as
frases.
Quando tudo isso está acontecendo, ( respire/ pausa ) a
ventania alimentou o fogo que já destruira impérios e estátuas e bronze e ferro e pó e folhas de louro e folhas de carvalho e foi
comendo com ódio todos os cacarecos da civilização que amamentara
minha infância de sonhos e mantivera mumificada dentro de mim a minha
istória, a nossa istória, sem H nenhum, a istória que Seu Silvio, Dona Margô e
Mário e Ambrosina, degredados filhos de
Giuditte, inventaram, rodeados como uma ilha, pela história de tantos
quilombolas e indigentes ex indígenas
O fogo no Museu Nacional transformou em cinzas os últimos
melhores capítulos de minha infância, de minha história perdida. O Museu
Nacional alimentava nossa fome de história.
Como restos pobres de imigrantes, aproveitávamos o que a cidade oferecia,
restos de um Rio Antigo restos de um Reino Antigo preso ainda pelas pedras dos
casarões ao esplendor fugaz de D. João o
sexto e seus filhos, Pedro Um e Dois .
Ali aprendi as primeiras lições de revolta com um cara que
parecia a mansidão, nunca levantou a mão para nenhum de nós. Deixava essa
tarefa árdua para dona Margô.
Ali aprendi, bem
depois, que Dona Margô é que era a heroína de muitas histórias.
Pobre mamãe, ter que surrar nós 4.
Ter que ficar fora da parte dos faraós, dos bustos romanos
todos com o nariz em riste,da benção masculina que o deus meio hebreu reservava
a nós, michelottos, expulsos para sempre
do paraiso del natio suol onde
palhaços ridevan, dio m’ eczaudia, harpas douradas ficavam mudas nos Salgueiros, le memorie nell
petto reascendiam e eles, eles, grandes,
adultos, saiam todo domingo da sala de
música com os olhos marejados de
lágrimas, por alguém que sofrera muito em alguma história carregada em
acordes meio sublimes -como a deles-.
Como a deles. .. Tive que viver ainda meia existência para descobrir que a
parte do cálice de vovó Ambrosina e dela,
mães, mulheres, italianas pobres, era diferente. Era a da borra no fundo do
vinho misturado com água e açucar para as crianças..
A parte de Luci, apagada após dois mil anos de tentativa de
se fazer notar.
A parte amarga.
A parte amarga que restou em mim.
E que mares, trombas de infinitas águas, lagoas negras de
tão profundas, fogo algum de tiroteios e ódios cavalgando pela estreita rua número
54 ou de amores e paixões que passariam pela rua 54 mas bem ao longe da criança
sentada a pequena varanda olhando as
raras pessoas passarem, vento algum veloz do morro, onde nasci .
Nada, nada
disso conseguirá afundar, dobrar, queimar o museu onde essa parte amarga se
refugiou,
tudo isso.
Tudo isso seguirá comigo até o fim, como seguiu no fundo de
cada um daqueles que hoje finalmente desapareceram de minha história dentro das
chamas e dos desleixo que consumiram nosso Museu Nacional.
Difícil comentar um texto com essa densidade. Só posso dizer amém!
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