cala a boca, cara!

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

LUCI





Hoje perdi meu pai pela segunda vez.
As chamas limparam as salas onde, de alguma maneira, ele ainda vivia dentro de mim.
Não consigo imaginar o Museu Nacional ali na quinta da Boa Vista sem ele a meu lado.
Não sei porque ele gostava tanto daquele museu que me levava muitas e tantas vezes lá.
Todas as salas ficaram para sempre cheias daquele homenzinho pequeno de olhos pequenos e cabeça enorme.
Branca. Dava nó em cada uma das 4 pontas do lenço e se cobria com aquele chapéu ridículo, sempre repetindo acima de nossa cabeça de michelotto, nem deus. Nunca vi outra cor em seus cabelos. Nasceu velho, parecia-me.
Não sei porque ficava horas- para mim o tempo não tinha a mesma dimensão que o dele nem que o meu hoje-
a me falar de faraós numa sala onde as múmias tinham um cheiro característico de múmias e eu me impregnava mais da morte que da aula sobre nosso povo se libertando deles. Todo Egito para Sílvio era grandeza. Mas para aumentar a grandeza dos que foram oprimidos por eles e se livraram. Toda vez que eu lá os via eu via também meu pai abrir o Mar Vermelho , se abrindo em largos gestos, dramático e gesticuloso como só meu pai. Nós somos o povo de deus. Meu deus, logo nós ali perdidos no fundo da Pavuna, cercados por despachos nas esquinas e o som do batuque de outros tantos deuses noite afora. Aos domingos pela manhã - depois da missa toda em F porque o vigário era alemão e nunca conseguiu se livrar desse defeito da língua alemã - como um ritual de uma religião pagã, sentavam-se na saleta de música, o Sr. Mário, pai; Dona Ambrosina, mãe;Adéle, filha;Sílvio,filho;Rainha Margô, mamãe oriunda de outra estirpe também fora de lugar, os andretti e o abiuzeiro se enchia de ária, o sapotizeiro se enchia de árias, e assim as mangueiras, videiras, jaboticabeiras, Pavuna.
A Pavuna se cobria toda soba a gelida manina ou transformada em Provenza , il mar e’ il suol, chi dal cuor ti cancellò, qual destino ti furo. Bando de italianos saudosos de sua terra natal, agarrados  a la voce del honor.
Que honra  há, deus meu, em se viver degredado e pobre?
Eles achavam que tinham uma cultura. Achavam que tinham um futuro se trabalhassem arduamente. Achavam que tinham o único deus verdadeiro do lado deles e quem  poderia ser contra.
E assim minha pequena família foi se afunando nas águas escuras da lagoa de  seu destino. 
A Lagoa Negra. 
A Pavuna dos Cariús, os verdadeiros donos daquelas terras todas agora tomadas por negros e italianos foragidos. Protegidos ferozmente por sua cultura alienígena.
Nas águas do lago nos afundamos. E quando a imagem deles ficou ereta no tempo, apoiada nas paredes sólidas e eternas e tradicionais e  históricas daquele Museu Nacional, quando a imagem daquelas vidas  se abrigou  como lembranças se refugiando nas salas de uma história do Mundo com cara de maior que a nossa, enfiada a golpes de solidão e perdas no fundo de  meu coração de pobre fugido de lá, quando toda essa frase sem sintaxe nem peso chegou penosamente até aqui , até onde eu também poderia escrever e  descrever e rever e fazer história eu também e fazer de conta que a história ensina, que a história se repete como as frases.
Quando tudo isso está acontecendo, ( respire/ pausa ) a ventania alimentou o fogo que já destruira impérios  e estátuas e bronze e ferro e pó  e folhas de louro e folhas de carvalho e foi comendo com ódio todos os cacarecos da civilização que  amamentara  minha infância de sonhos e mantivera mumificada dentro de mim a minha istória, a nossa istória, sem H nenhum, a istória que Seu Silvio, Dona Margô e Mário e Ambrosina, degredados filhos de  Giuditte, inventaram, rodeados como uma ilha, pela história de tantos quilombolas e indigentes ex indígenas
O fogo no Museu Nacional transformou em cinzas os últimos melhores capítulos de minha infância, de minha história perdida. O Museu Nacional alimentava nossa fome de história.  Como restos pobres de imigrantes, aproveitávamos o que a cidade oferecia, restos de um Rio Antigo restos de um Reino Antigo preso ainda pelas pedras dos casarões ao esplendor fugaz  de D. João o sexto e seus filhos, Pedro Um e Dois .
Ali aprendi as primeiras lições de revolta com um cara que parecia a mansidão, nunca levantou a mão para nenhum de nós. Deixava essa tarefa árdua para dona Margô. 
Ali aprendi,  bem depois, que Dona Margô é que era a heroína de muitas histórias.
Pobre mamãe, ter que surrar nós 4.
Ter que ficar fora da parte dos faraós, dos bustos romanos todos com o nariz em riste,da benção masculina que o deus meio hebreu reservava a nós, michelottos, expulsos para sempre  do paraiso  del natio suol onde palhaços ridevan, dio m’ eczaudia, harpas douradas  ficavam mudas nos Salgueiros, le memorie nell petto reascendiam  e eles, eles, grandes, adultos, saiam  todo domingo da sala de música  com os olhos marejados de lágrimas, por alguém que sofrera muito em alguma história carregada em acordes  meio sublimes -como a deles-. Como a deles. .. Tive que viver ainda meia existência para descobrir que a parte do cálice de vovó Ambrosina  e dela, mães, mulheres, italianas pobres, era diferente. Era a da borra no fundo do vinho misturado com água e açucar para as crianças..
A parte de Luci, apagada após dois mil anos de tentativa de se fazer notar.
A parte amarga.
A parte amarga que restou em mim.
E que mares, trombas de infinitas águas, lagoas negras de tão profundas, fogo algum de tiroteios e ódios cavalgando pela estreita rua número 54 ou de amores e paixões que passariam pela rua 54 mas bem ao longe da criança sentada  a pequena varanda olhando as raras pessoas passarem, vento algum veloz do morro, onde nasci .
 Nada, nada disso conseguirá afundar, dobrar, queimar o museu onde essa parte amarga se refugiou,
tudo isso.
Tudo isso seguirá comigo até o fim, como seguiu no fundo de cada um daqueles que hoje finalmente desapareceram de minha história dentro das chamas e dos desleixo que consumiram nosso Museu Nacional.


 


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