cala a boca, cara!

terça-feira, 18 de setembro de 2018

O MASCATE, A PÉ RAPADA E OS FORASTEIROS


                                                                michelotto locuto, causa infinita                                                   *



Há espetáculos que nos derrotam.
Estão entre limites de nossa adaptabilidade ao mundo.
Vou tentar explicar.
É bom se lembrar que espetáculo, vem de spectare+ o diminutivo “ulus”. Significa pois originalmente apenas uma olhadela de soslaio, palavra feíssima em português. Em inglês é “glance”, bem mais bonita- apesar de Suassuna- e ainda lembra glande, também bonita.É bom lembrar também um pouco de psicologia social via Google. Lá diz que uma pessoa valorizar o que é seu é muito bom.
E é claro que é!
Está assim explicado porque  todas tendências regionalistas em arte têm o apelo de nos encantar.
Porque são baseadas no Google!
 Nossa pátria, nossa região, nosso nordeste, nosso cuscús, nossos cús, nossa rabeca, nossa seleção de futebol, nossa companhiazinha de teatro nos comove o coração, todo esse pequeno mundo que nos cerca e acalenta tem também algumas desvantagens.
Uma delas é que muitos pseudo-intelectuais se aproveitam dessa nossa fraqueza emocional endêmica para nos fazer engolir coisas muito ruins mas que estão revestidas com o manto do sotaque, da musiquinha instrumental, da sagacidade rurbana. E assim, acobertados por esta pelagem de cordeiros de nosso rebanho, vão ocupando cargos públicos pra todo lado, alimentando-se, famigerados, de nossas parcas verbas para manutenção de nossa cultura e de nossa região e de nossa pátria e de nossa alma.
Todos conhecem de sobejo as pessoas, as famílias , os arraes, os melo, os monteiros, os freyre, as instituições , governos de Pe, fundarpes e outras pinóias que se perpetuam ervas daninhas por aqui, usando o falso sotaque do regional.
Esse regionalismo de mentes e fachada nos serviu para manter ilhados, afastados de muitos continentes.
Daí nossa dificuldade, aqui, de falar sobre determinadas peças ou determinados movimentos culturais.
Ficaram fora de nossa estreitíssima visão regional, que só consegue alcançar os montes Guararapes e suas batalhas cobertas de glória.E sangue, muito sangue..
A peça que vi me fez pensar em tudo isso. Pensar ao ter dificuldade de classificá-la.
Ela tem mais música que muito musical, mais dança que muita dança, mais performance que muita performance, mais safadeza  que muito Barreto Junior, mais crítica social que muito discurso de candidato ou papo de nossa esquerda regional, mais criatividade que o nosso papa, o Angu.
Mas enfim ela é uma peça e não um tratado sócio-econômico regionalista verbete mau escrito da Itaú Cultural.
Então há o que se falar sobre. E talvez até muito.
Pois ela versa sobre nossa capacidade de contar nossa história. Em seu centro está, portanto tudo o que falei acima, porém dito com mais verve. Não foi divagação para encher de texto meu tempo com você leitor.
E esse, a construção do texto, é sem dúvida o maior problema que nós enfrentamos hoje em dia, tanto no teatro como no Congresso Nacional.
Nós e os anjos.
Por serem ruins de leitura os anjos da cara virada erraram o endereço e  queimaram o museu  e não o congresso NACIIONAL!
A história de nossas misérias foi pensada ao modo bufão. E isso é um filão que pode ainda render muito ao espetáculo.Também porque esse ator é muito bom. E um bufão tem  que ser muito bom.
Passemos à literatura.
Olinda é uma dama uó, Recife um macho retado que não pode ver Olinda sem se encaixar. Ligeiro erro de glance do autor sobre  nosso macho Recife que, graças a deus, não é nem de longe chegado nisso. O Holandês, um produtor cultural ávido de ficar com tudo e bom só de papo.
Enfim, todos etceteras da peça muito bem achados- bene trovatto.
Agora vou dar minha lição.
Minha Aula Magna que a Ufpe me negou.
Se eu tivese ficado na Sorbonne em 1972 essa aula seria na École de France isso sim. Mas ai minha história pessoal seria diferente e eu não teria tido a chance de seguir o JGE de 2019 .
Uma lástima e uma falha em minha cultura um tanto vastíssima.
Acreditem, não troco essa aula para vocês por nenhuma que dei na Sorbonne ao lado de Barthes.
Não só para um grupo, porque não tenho tempo nem paciência para me limitar a dar aulas para um grupo do teatro pernambucano. Sou maior, sou genial, dou aulas para o mundo.
Tenho sotaque pernambucano também.
Vamos lá.
Barthes ne ensinou que TEXTO não é aquela coisa cheia de letrinhas em fila de formiga numa folha de papel.
“Texto é como uma renda de bilros de Passira em Pernambuco”- dizia ele e adaptava eu.
“Deixa essa noção velha e burra para o pessoal dos departamentos de Letras das universidades brasileiras”- disse-me Barthes , também textualmente.
Um espetáculo DEVE ser considerado como uma maravilhosa colcha. Conhecem as, antigas, de retalho? Isso! Estão agora nos entendendo.
O trabalho em teatro é aquela parte em que se tece.
O espetáculo é apenas aquela parte em que se dá a ver a obra, como numa piscadela. O que se faz por debaixo das colchas é mistério e segredo. E muito mais.
Como ver Mascates sob essa ótica ?
O crítico do JGE é apenas o que tem a chance de piscar muitas vêzes
 Porque tenho um video e passo e repasso e vou e volto
 Então podemos de algum modo- se não formos estritamente obtusos-
presenciar os fios, a urdidura e os nós de cada trama.
As urdidura desse espetáculo:
1-      escolha da nossa história.
2-      sob a ótica do bufão, isso é, inconveniente em sua verdade.
3-      espaço cênico, “cenário” kinesfera de atuação  funcional, mágico, sobe , desce, gira, esconde coisas, tem possibilidade de se transfigurar em outros espaços, é birô de âncora de noticiário, é nau, é a cidade de recife é muita coisa mesmo, sobretudo e portanto é admirável. O que nos foi apresentado dava pano para 10 outras colchas, de tão inventivo que é. Podem acabar virando muletas da atuação.
4-      o ator é o que em última análise  é o único responsável  pelo espetáculo, porque a colcha é montada por sobre seu corpo, seu corpo é aquela almofada  cheia de bicos onde se prendem as linhas para o transado e os nós. Quem nos re-presenta é um grande ator. Versátil. Á vontade. Nos faz respirar o texto barthesiano. Dá tempo ao riso. Só não dá tempo à história, ao enredo, à trama do todo, porque isso infelizmente é o que se atribui a  um diretor do século XIX e é o que está visivelmente atrapalhando a todos, aos nós, a nós, ator e público.
Esse é meu gancho para falarmos dessa figura horrenda chamada diretores.
5-      A direção nunca deveria existir já que não estamos mais no tempo inicial do Tap ou do TEP, temos hoje em dia atores que sabem ler, sabem cantar, sabem dançar e principalmente, que PENSAM. Ou não?  Ora, tecer teatro não é só juntar todos os fios disponíveis, texto literário, atores, cenário, figurino e nem vou repetir a ficha técnica.
É dar nós, tramar, tudo isso.
E como tudo isso se chama teatro, toda trama está em relação a um público presente e não a um indivíduo leitor, como um romance.  E é por isso que dependemos de ritmo. O ritmo é a respiração conjunta entre atores e seu público. O que significa que está permitido aos atores pular trechos enormes de sua apresentação- sua estadia diante de seu público- caso perceba que está tirando o ar, sufocando, cansando ou levando a dormir o outro elemento básico da existência de uma ação teatral.
O presente espetáculo arrasta algumas vezes o ritmo.
Creio que basicamente por causa da causa maior de nossos males: um texto literário pouco trabalhado, pouco burilado, pouco aquilo que um Shakespeare fazia.
Se me entenderam até aqui,
o texto literário é apenas um fio de tudo o que se queira chamar de texto pós -Barthes.
Se me entenderam bem
o trabalho do ator e diretores e ficha técnica é o de dar nós nisso tudo.
Se me entenderam bem,
uma colcha não nos esquenta mais por ser enorme, mas pode ser espessa.
1 minuto de um bom teatro irá nos esquentar mais que uma hora de sermão.
E nos fará passar uma eternidade, respirando juntos.
Beckett quem o disse ao escrever Sopro, peça de uma só respiração gigantesca.
6-      O texto literário, ou a falação, também chamado impropriamente de dramaturgia, não é linha 10, forte. É fraquinha e ameaça toda hora romper o espetáculo, desviar nosso olhar apaixonado. Pois queiramos ou não, a falação ainda é a marca primordial de nossos espetáculos.
Quando a retiramos, como Samuel Beckett o fez em sua dramaturgia e mudou para sempre o alcance de nossa cega visão teatral  dezenovecentista, quando a retiramos muitos ainda se sentem órfãos como se tivessem perdido algo essencial como pai e mãe. Ora, já diz meu Google, pais nunca foram essenciais, apenas acidentes na  vida de um mamífero.
E por último,
mas não por fim, já que toda minha falácia está inscrito no JGE, afirmo que devíamos ter verbas não só para apresentação das colchas, como para discussão de nossa técnica de tecer atual e de suas mudanças. Não, não é aquela coisa de nome inglês.
O que peço não é mais dinheiro para workshop não.
Workshop é bom mas contempla partes, pequeninas técnicas pessoais aqui e ali, micro-gurus do micro, paninhos de cozinha que também têm sua utilidade. Temos que pensar grande.
Temos que ter dinheiro para nos reunirmos maciçamente e mudarmos todos os termos, gramáticas e sintaxes antigas que nos regem e nos atrapalham e todos espaços velhos dessa cidade onde qualquer chama de um entusiasmo pode criar incêndios desproporcionais e nos transformar em cinzas.
Marx já dizia a respeito, os mortos governam os vivos.
Que nossa única chance de nos governarmos não seja a de antes sermos torrados vivos dentro do Sta. Isabel ou algum desses caros e velhos casarões alternativos. Estamos sempre lutando para não, mas em verdade sendo governados por teorias, ótica e visão estreita do século XIX, um romantismo sem glamour porque fora de sua época.
Epokè, é o momento em que fazemos história.
Já passou da hora de pegarmos a nossa na mão e sair caminhando e cantando.
Por favor, sigamos a canção.
E eu nem gostei tanto do espetáculo.
Imaginem se eu tivesse gostado!!!
Indico e recomendo.


O Mascate, a pé rapada e os Forasteiros (Cia. De Teatro Cínicas com Objetos/ Recife – PE)
Texto e Atuação: Diógenes D. Lima
Supervisão Artística: Marcondes Lima e Jaime Santos
Coreografias: Jorge Kildery
Adereços: Triell Andrade e Bernardo Júnior
Iluminação: Jathyles Miranda
Execução de Iluminação: Rodrigo Oliveira
Execução de sonoplastia: Júnior Melo
Programação Visual: Arthur Canavarro
Fotografia: Ítalo lima, Toni Rodrigues, Sayonara Freire e Sócrates Guedes
Cenotécnico: Gustavo Oliveira
Assessoria de impressa: Cleyton Cabral
Gerente de Produção: Luciana Barbosa
Gênero: Comédia
Duração: 60 mim
Classificação etária: 16 anos

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